Você conhece as grandes personalidades da conservação? Ao longo dos anos, pudemos contar com alguns heróis que deram início a grandes ideias ou tiveram papéis importantes em determinados projetos de proteção ao meio ambiente. Seus princípios e histórias de vida são uma inspiração para nós, que formamos uma enorme corrente a favor da natureza.
Vamos explorar a história desses gigantes aqui em nosso blog. A informação é nossa principal arma. Por meio dela, desejamos munir a população de conhecimento, inspirar cidadãos comuns e trazer o maior número de pessoas para o “lado verde da força”.
Niède Guidon dedicou mais de meio século à arqueologia e à preservação da história humana no Brasil. Neste especial do Bond da Conservação, você conhece a trajetória da cientista que viu a importância do sertão do Piauí e o transformou em um dos maiores patrimônios arqueológicos do planeta. Uma jornada com inúmeros desafios, enfrentando o abandono do Estado, o ceticismo da academia e a devastação do tempo.
Foto: Governo Federal
Quem foi Niède Guidon
Niède Guidon foi uma das arqueólogas mais influentes do Brasil e da América Latina. Nascida em 1933, dedicou sua vida à pesquisa sobre os primeiros povos do continente americano e à preservação do patrimônio arqueológico do Piauí, especialmente no Parque Nacional da Serra da Capivara. Seu trabalho confrontou teorias científicas consolidadas, mobilizou políticas públicas e construiu instituições fundamentais para a ciência brasileira.
Filha de mãe brasileira e pai francês, cresceu entre as culturas europeia e as raízes do Brasil. Seu nome, Niède, foi uma homenagem de sua mãe, inspirada no rio Nied, na França.
Onde nasceu Niède Guidon? Em Jaú, no interior de São Paulo, em 1933. Apesar de ter crescido em uma cidade do Sudeste brasileiro, foi no Nordeste que sua carreira encontrou propósito e projeção internacional. Desde cedo, Guidon teve contato com múltiplas línguas, culturas e livros, o que despertou sua curiosidade por civilizações antigas e saberes esquecidos.
Esse ambiente familiar e multicultural, somado a uma educação voltada às artes e ciências, influenciou diretamente sua trajetória como pesquisadora.
Desde a juventude, interessou-se pelas artes e pela história, o que a levou a se formar em História Natural na Universidade de São Paulo (USP). Em seguida, aprofundou seus estudos na França, onde concluiu o doutorado na Sorbonne. Sua formação na Europa trouxe um olhar interdisciplinar para a arqueologia, integrando conhecimento científico e sensibilidade à preservação do patrimônio.
A arqueóloga fez parte de uma geração de intelectuais que lutaram pela institucionalização da ciência no Brasil. Ainda nos anos 1960, participou da construção da Lei Federal nº 3.924/1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos.
Essa lei, incentivada a existir por Paulo Duarte com quem Niède colaborou, afirma que tais monumentos pertencem ao poder público, uma conquista fundamental para a proteção dos sítios arqueológicos ameaçados pelo crescimento urbano e pelo desmatamento.
Durante as décadas seguintes, Niède participou de expedições pelo sertão nordestino, inicialmente para coletar informações para o Museu Paulista (hoje Museu do Ipiranga). À época, acreditava-se que os registros mais antigos da presença humana no Brasil estavam restritos à região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Porém, as evidências que começou a encontrar no sul do Piauí mudaram para sempre essa narrativa.
Foi Luiz Augusto Fernandes, o então prefeito de Petrolina, quem indicou a Niède a existência de pinturas rupestres em uma região isolada no interior do Piauí.
Intrigada, ela organizou expedições à região. Ao chegar na Serra da Capivara, deparou-se com um vasto acervo de pinturas e artefatos ainda não estudados pela arqueologia. Estava diante de um patrimônio cultural inestimável e, com ele, da missão de protegê-lo e divulgá-lo ao mundo.
Teoria de Niède Guidon: o que ela descobriu?
A principal contribuição científica de Niède Guidon foi a contestação da teoria tradicional sobre o povoamento das Américas. Até os anos 1980, predominava a hipótese de que os primeiros humanos haviam chegado ao continente há cerca de 12 mil anos, atravessando o Estreito de Bering, no norte. Essa teoria, chamada de “modelo Clóvis”, era considerada praticamente indiscutível.
Porém, nas escavações lideradas por Niède na Serra da Capivara, especialmente no sítio Boqueirão da Pedra Furada, foram encontrados vestígios humanos com datações mais antigas, algumas de até 50 mil anos atrás. Esses achados foram publicados em 1986 na revista Nature, uma das mais prestigiadas do mundo científico, em um artigo de três páginas que causou enorme repercussão internacional.
A publicação defendeu a existência de ocupação humana no Brasil dezenas de milhares de anos antes do que se pensava. Para muitos arqueólogos, a teoria de Niède era revolucionária, mas também controversa. Durante anos, suas descobertas foram questionadas e até ridicularizadas por parte da comunidade científica. Ainda assim, ela se manteve firme, defendendo suas evidências com rigor técnico e ética.
Hoje, mesmo que o debate sobre as rotas de povoamento ainda persista, há um crescente reconhecimento da importância das descobertas feitas no Brasil. Novos estudos e tecnologias de datação reforçam a possibilidade de que o continente americano tenha sido ocupado muito antes do modelo tradicional, com múltiplas rotas migratórias e centros de ocupação espalhados.
Foto: Reprodução Blogs UNICAMP
Sítio arqueológico Serra da Capivara
Ao chegar na Serra da Capivara, nos anos 1970, Niède Guidon encontrou pinturas rupestres? Sim, mas muito além disso! Descobriu um território rico em biodiversidade, vestígios arqueológicos milenares e comunidades locais desassistidas. A região era isolada, com difícil acesso e pouca infraestrutura. O cenário político era hostil: vivia-se a ditadura militar, e pesquisadores vindos da USP eram frequentemente acusados de “comunistas”.
Apesar das dificuldades, ela se fixou no local com sua equipe e iniciou um trabalho sistemático de mapeamento e escavação dos sítios. A região revelou-se uma das mais ricas em vestígios do continente: centenas de abrigos, pinturas, ferramentas, fogueiras e ossadas humanas. Não havia paralelo no Brasil.
As pinturas rupestres da Serra da Capivara são um dos maiores patrimônios culturais do país. Representam cenas do cotidiano, rituais, animais, combates e práticas simbólicas. Algumas são extremamente bem preservadas e possuem datações que remontam a dezenas de milhares de anos. É o caso da Toca do Paraguaio, com mais de 900 desenhos em um abrigo de 70 metros, e do Boqueirão da Pedra Furada, que concentra cerca de 1.200 pinturas distribuídas ao longo de 75 metros de altura.
Por Vitor 1234 – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4176607
Esses sítios foram fundamentais para a formulação da teoria de Niède Guidon sobre o povoamento precoce das Américas. Mas também chamaram atenção para a urgência de proteção ambiental e cultural da área. Por isso, em 1979, ela liderou a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, oficialmente instituído em 1979 e reconhecido como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1991.
O parque abrange uma área de 135 mil hectares e se espalha por quatro municípios: São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, Canto do Buriti e São João do Piauí.
A região abriga mais de 1.354 sítios arqueológicos, dos quais 183 estão abertos à visitação. As pinturas rupestres espalhadas por cavernas, rochas e paredões registram a vida, os rituais, as caçadas e o imaginário de povos que viveram há dezenas de milhares de anos. Estilisticamente, são obras ricas em perspectiva, movimento e composição, bem distantes da imagem de uma arte “infantilizada” como se ensinava nas universidades europeias até então.
Com apoio do governo francês, em 1979, fundou o parque com recursos internacionais e iniciou a construção de um modelo de desenvolvimento regional sustentável, ancorado na ciência e na conservação ambiental.
Foto: Por Artur Warchavchik – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0,
Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM)
Para gerir o patrimônio cultural e científico da região, Niède fundou, em 1986, a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). A entidade sem fins lucrativos se tornou a base institucional da luta por financiamento, preservação e pesquisa na Serra da Capivara.
Sob sua liderança, a FUMDHAM articulou convênios com universidades, institutos de pesquisa e organizações internacionais. Também promoveu educação ambiental, formação de técnicos e cientistas locais, transformando a fundação em um centro de desenvolvimento humano integral.
Infelizmente, a falta de apoio governamental sempre foi um entrave. Durante seis anos, entre os anos de 2009 a 2015, o parque ficou sem receber apoio do governo federal. O número de funcionários caiu de 270 para 30. Niède frequentemente se via obrigada a buscar recursos emergenciais ou ameaçar fechar os portões do parque. Chegou a dizer: “Se nada for feito, o parque vai fechar.”
Foto: Reprodução FUMDHAM
A importância dos mateiros
Um capítulo à parte da história de Niède Guidon é a valorização dos mateiros, moradores da região que conheciam os caminhos do sertão como ninguém. Foram eles que guiaram a equipe da arqueóloga pelas trilhas, cavernas e sítios escondidos da caatinga.
Não são só guias, tornaram-se colaboradores fundamentais das pesquisas. Niède reconhecia sua importância e fazia questão de remunerá-los, além de permitir que os primeiros sítios arqueológicos fossem batizados por eles, com nomes populares. Essa simbiose entre ciência e cultura local foi um dos grandes diferenciais do projeto de Niède.
Ela acreditava que preservar só era possível com envolvimento da comunidade. Por isso, investiu em infraestrutura, escolas, capacitação profissional e educação ambiental. Para ela, cuidar do patrimônio era também cuidar das pessoas.
Sua contribuição é eterna.
Confira outras histórias incríveis do Bond da Conservação
Para saber mais:
- Podcast Os Caminhos de Niéde Guidon
- Documentário “Niède”
- Livro Niéde Guidon: Uma arqueóloga no sertão
- Livro Niède Guidon: a Arqueóloga da Humanidade
- Site oficial da FUMDHAM
Redação: Júlia Quintaneiro
Revisão: Juliana Badari